×

DEJA VU ALL OVER AGAIN

DEJA VU ALL OVER AGAIN

inspirado em "Yogi" Berra - jogador e treinador de baseball (1946-1965), americano e filósofo popular não intencional!

"The man who says it can?t be done shouldn?t stand in the way of one already doing it". Barry McKernan

No final do ano passado publiquei artigo científico na forma de editorial na revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC) traçando um paralelo histórico entre a videolaparoscopia e a cirurgia robótica (Nacul MP. Laparoscopy & Robotics: a historical parallel. Rev Col Bras Cir. 2020 Nov 23;47:e20202811). No artigo discuto como a evolução das plataformas robóticas trouxe à tona questões éticas, econômicas, educacionais e de aplicabilidade clínica que remetem ao início dos anos 1990, quando a videolaparoscopia começou a se disseminar como uma tecnologia que revolucionaria a cirurgia. Na época, a videolaparoscopia foi recebida com muita resistência por diversos setores, inclusive pela academia médica. A técnica foi considerada cara, complexa, pouco disponível e com aplicações clínicas limitadas. Porém, em pouco tempo, estabeleceu-se como padrão-ouro para o tratamento da maioria das doenças em diferentes sistemas e órgãos e em grande parte das especialidades cirúrgicas. Neste momento atual, em que a cirurgia robótica se expressa como uma tecnologia disruptiva, o medo da "nova tecnologia", vista quando do surgimento da videolaparoscopia, se repete com o advento de uma "era robótica".

Recentemente o lendário cirurgião americano Dr. Edward Felix (Pismo Beach - Califórnia, EUA), publicou artigo de opinião no site "General Surgery News" onde também faz uma análise da expansão da cirurgia robótica como um "Déjà Vu" do aparecimento e disseminação da videolaparoscopia no início dos anos 1990. Dr. Felix é membro do conselho editorial do referido site e esteve envolvido no desenvolvimento da cirurgia minimamente invasiva (CMI) desde 1990.

Não há dúvidas que na medicina, assim como nas diversas áreas do conhecimento humano, a história tende a se repetir continuamente. Arthur Schopenhauer, conhecido filósofo alemão do século 19, dizia que toda a verdade passa por três estágios:

Primeiro, é ridicularizada.

Em segundo lugar, é violentamente contrariada.

Terceiro, é aceita como evidente.

Isso é exatamente o que vi acontecer nos últimos 30 anos durante o crescimento da CMI, observa o Dr. Felix. "Não é ruim duvidar da inovação. No entanto, devemos ser muito cuidadosos em como julgamos e aceitamos isso, pois pode se tornar uma ladeira escorregadia".

Desde a introdução da CMI em 1985 pelo Dr. Erich Muhe na Alemanha, a colecistectomia laparoscópica e muitos dos procedimentos que se seguiram repetiram os estágios da verdade de Schopenhauer. Muhe não foi apenas condenado ao ostracismo pela sociedade cirúrgica alemã, mas também acusado de crime. Finalmente, em 1999, foi reconhecido como herói e pioneiro pela Sociedade Americana de Cirurgiões Gastrointestinais e Endoscópicos (SAGES), completando a fase final de Schopenhauer. Apendicectomia, Cirurgia anti-refluxo, colectomia e hernioplastia inguinal laparoscópica foram procedimentos minimamente invasivos alvos de ataques semelhantes. Cirurgiões que demonstraram excelentes resultados com esses procedimentos foram criticados e pessoalmente ridicularizados, mas acabaram tendo suas técnicas aceitas e, eventualmente, consideradas como padrão ouro terapêutico. Foram acusados de que os procedimentos minimamente invasivos que estavam propondo não eram práticos ou possíveis, pois os seus resultados não eram reprodutíveis. Na opinião do Dr. Felix, em todos esses casos houve uma razão para a existência dessas dramáticas diferenças nos resultados entre cirurgiões: o nível de treinamento e de experiência dos mesmos.

No artigo, Dr. Felix utiliza o tratamento das hérnias da região inguinal por técnicas laparoscópicas como exemplo de um tipo de procedimento minimamente invasivo que passou pelos estágios de Schopenhauer para ganhar aceitação mundial. Embora essa abordagem fosse baseada em técnicas abertas previamente descritas e aceitas, não apenas sua validade foi negada, como muitos cirurgiões que a utilizavam foram pessoalmente atacados em reuniões científicas e na literatura. Uma série de artigos foi publicada apoiando as afirmações dos negadores de que uma abordagem laparoscópica para o tratamento das hérnias da região inguinal seria muito cara, demorada, associada a complicações e, portanto, inferior a uma abordagem aberta. No entanto, após 25 anos, quando os cirurgiões adquiriram experiência na abordagem laparoscópica, as alegações que justificaram tal ridículo e oposição se provaram falsas. A chave, mais uma vez, foi a aquisição de treinamento e experiência. As diretrizes publicadas agora apoiam a utilização das técnicas minimamente invasivas como auto evidentes.

A experiência de "Déjà Vu" referida pelo Dr. Felix se refere as batalhas que tem testemunhado nos últimos meses nas redes sociais e na literatura cirúrgica sobre o uso de uma plataforma robótica para correção de hérnias da região inguinal. Este conflito é uma reminiscência das batalhas sobre a abordagem laparoscópica da qual ele era um participante ativo. Desta vez, porém, Dr. Felix iniciou como um dos ridicularizadores. Os primeiros a adotar a abordagem robótica fizeram afirmações que o Dr. Felix não poderia aceitar. Com uma visão do passado, Felix decidiu reavaliar a abordagem com o uso da ferramenta robótica e não ridicularizar aqueles que realizam o procedimento. A questão era se a abordagem robótica para correção de uma hérnia inguinal tinha valor e se seus proponentes ou negadores estavam corretos desta vez.

Ensaio clínico randomizado publicado em maio de 2020 (Prabhu AS, Carbonell A, Hope W, Warren J, Higgins R, Jacob B, Blatnik J, Haskins I, Alkhatib H, Tastaldi L, Fafaj A, Tu C, Rosen MJ. Robotic Inguinal vsTransabdominal Laparoscopic Inguinal Hernia Repair: The RIVAL Randomized Clinical Trial. JAMA Surg. 2020 May 1;155(5):380-387) que compara a hernioplastia inguinal robótica versus laparoscópica, não conseguiu comprovar vantagem da abordagem robótica. A utilização da ferramenta robótica incorreu em custos mais elevados e maior tempo operatório em comparação com a abordagem laparoscópica, com maior frustração e nenhum benefício ergonômico para os cirurgiões. Conforme Dr. Felix, esta conclusão parece contrária ao que muitos cirurgiões robóticos expressam online e na literatura científica. Como esses resultados e argumentos remetem aos estudos publicados sobre a correção de hérnias da região inguinal por técnicas laparoscópicas, bem como de outros procedimentos minimamente invasivos na década de 1990, Dr. Felix levanta a questão se não seria o fator "experiência do cirurgião" um fator subjacente importante? "Se olharmos para cada uma de suas conclusões, a experiência dos cirurgiões poderia ter sido a causa subjacente das diferenças que os autores dos artigos encontraram?".

Em 2004, Leigh Neumayer e colaboradores publicaram um ensaio clínico randomizado na importante revista científica "The New England Journal of Medicine" em que comparam pacientes operados de hérnias da região inguinal em 14 centros médicos (Veterans Affairs) por técnica laparoscópica e aberta (Neumayer L, Giobbie-Hurder A, Jonasson O, Fitzgibbons R Jr, Dunlop D, Gibbs J, Reda D, Henderson W; Veterans Affairs Cooperative Studies Program 456 Investigators. Open mesh versus laparoscopic mesh repair of inguinal hernia. N Engl J Med. 2004 Apr 29;350(18):1819-27).  O desfecho primário avaliado foi a recorrência de hérnias em dois anos. Os autores concluíram que a técnica aberta seria superior à técnica laparoscópica para reparo de hérnias primárias, principalmente em termos de recidivas. O que os autores não enfatizaram é que para cirurgiões com mais de 200 hernioplastias inguinais laparoscópicas operadas, os resultados eram semelhantes aos da cirurgia aberta, ou seja, a experiência do cirurgião com a técnica influenciou marcadamente os resultados. Em analogia, quando avaliamos o estudo da cirurgia robótica (The RIVAL Randomized Clinical Trial), uma vez que o reparo inguinal laparoscópico tem sido empregado há décadas, é evidente que os cirurgiões neste estudo tinham muito mais experiência com a abordagem laparoscópica do que com a robótica. Este fator de confusão pode ter influenciado significativamente os resultados do estudo, influenciando todas as suas conclusões, incluindo tempo operatório, custo, e mesmo ergonomia. O nível de dificuldade com uma nova abordagem tem relação direta com o desconforto físico e emocional do cirurgião durante a sua curva de aprendizado. A diferença de custo é influenciada pelo tempo cirúrgico, o qual diminui com a experiência do cirurgião. Além de operarem mais rápido, cirurgiões robóticos experientes têm sido capazes de diminuir o número de instrumentos usados, o que também influencia no custo do procedimento. Esse nível de especialização pode não ter sido atingido por todos os cirurgiões participantes do estudo e, portanto, pode ter influenciado negativamente o braço robótico do estudo.

Como alguém que foi inicialmente um cético vocal em relação à abordagem robótica para correção de hérnias da região inguinal, Dr. Felix confessa que agora vê essa abordagem sob uma nova luz: "à medida que mais cirurgiões dominem a plataforma robótica e demonstrem resultados e custos equivalentes aos da abordagem laparoscópica, a abordagem robótica para correção de hérnias inguinais deverá ter uma vida longa e saudável".

Dr. Felix como um defensor da abordagem minimamente invasiva para reparo de hérnia inguinal avalia a abordagem robótica como apenas mais uma ferramenta disponível. A especialização só pode vir da experiência e treinamento, como aconteceu com outras técnicas minimamente invasivas, e fará toda a diferença nos resultados futuros. O crescimento de reparos de hérnia inguinal por técnicas minimamente invasivas aumentou rapidamente desde a introdução da plataforma robótica, em parte devido à orientação, simuladores e instrução formalizada. Dr. Felix prevê que é apenas uma questão de tempo até que o estágio final de Schopenhauer seja alcançado e espera que não demore os quase 25 anos que os reparos laparoscópicos esperaram para serem definitivamente aceitos.

Dr. Felix conclui que no futuro, devemos ter muito cuidado e olhar crítico quando analisarmos dados e julgarmos os estudos que incluem casos realizados durante uma curva de aprendizado. Isso pode ser muito difícil porque o número de casos necessários para se graduar na categoria de especialista varia amplamente entre os cirurgiões. Quando avaliamos estudos negativos e aqueles que são contrários à opinião aceita, precisamos determinar se o desenho do estudo pode ter afetado os resultados. Houve fatores de confusão que poderiam ter influenciado positiva ou negativamente os resultados? Depois de responder a essas perguntas, só então devemos decidir aceitar, rejeitar ou continuar a investigar as conclusões. Se outros já apresentaram resultados positivos de uma nova técnica ou abordagem cirúrgica, não precisamos ser negadores, mas sim procurar entender por que eles tiveram sucesso. Dr. Felix encerra o artigo argumentando: ?o ridículo e a oposição violenta devem ser substituídos por uma avaliação cuidadosa dos dados e um debate educado. Se aceitarmos o dogma, deixaremos de inovar. Minha esperança é que possamos julgar a cirurgia robótica, bem como outras que virão, sem repetir os estágios da verdade de Schopenhauer".

 

  1. Nacul MP. Laparoscopy & robotics: a historical parallel. RevColBras Cir. 2020 Nov 23;47:e20202811
  2. https://www.generalsurgerynews.com/Opinion/Article/03-21/Robotic-Surgery-D-j-agrave-Vu-All-Over-Again-/62765?fbclid=IwAR0s-k_bGSrz90HM0qnp9j9HrrJ5kTx5t23aDsxU1LWCdtbMqcoXB7NOhuQ
  3. Prabhu AS, Carbonell A, Hope W, Warren J, Higgins R, Jacob B, Blatnik J, Haskins I, Alkhatib H, Tastaldi L, Fafaj A, Tu C, Rosen MJ. Robotic Inguinal vsTransabdominalLaparoscopic Inguinal Hernia Repair: The RIVAL RandomizedClinicalTrial. JAMA Surg. 2020 May 1;155(5):380-387.
  4. Neumayer L, Giobbie-Hurder A, Jonasson O, Fitzgibbons R Jr, Dunlop D, Gibbs J, Reda D, Henderson W; Veterans Affairs CooperativeStudiesProgram 456 Investigators. Open mesh versus laparoscopicmeshrepairof inguinal hernia. N Engl J Med. 2004 Apr 29;350(18):1819-27.