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Cirurgia Robótica

Cirurgia Robótica

CIRURGIA ROBÓTICA - DE PROMESSA À REALIDADE

"O futuro da cirurgia é robótico e flexível"

Silvana Peretta - IRCAD

A introdução de dispositivos robóticos para auxilio de cirurgias endoscopicamente executadas tem trazido consigo um maior apelo pela realização de procedimentos minimamente invasivos. A cirurgia robótica mantém os benefícios da cirurgia minimamente invasiva que incluem a redução da perda sanguínea, diminuição da dor pós-operatória, redução da resposta inflamatória, retorno imediato às atividades diárias, redução de complicações de sítio operatório (infecções e hérnia incisional), entre outros, acrescentando vantagens baseadas em tecnologia que ampliam as possibilidades técnicas do cirurgião. A plataforma robótica permite que os cirurgiões realizem cirurgias a partir de um console remoto, com instrumentos de robótica inseridos através de pequenas incisões.

O robô Da Vinci ® da empresa Intuitive®, único disponível no Brasil, é composto por três componentes principais: um console ergonômico do cirurgião, um totem de quatro braços cirúrgicos interativos junto ao paciente (denominado de patient side cart) e uma torre de vídeo de alta definição que abriga processadores do sistema (núcleo central ou core). Os dedos do cirurgião manipulam controles que transferem remotamente às pinças todos os comandos, filtrando pequenos tremores ou movimentos muito bruscos. Dois sistemas óticos de alta qualidade fundem a imagem e a transmitem ao console cirúrgico resultando em uma visão em três dimensões com altíssima definição (full HD).

O sistema oferece vantagens que diferenciam a cirurgia robótica dos procedimentos videocirúrgicos "convencionais". O movimento robótico replica os movimentos realizados no console do cirurgião com mais precisão, porém sem atividade autônoma. Além disso, acrescenta a possibilidade do cirurgião operar em uma posição ergonomicamente melhor. As pinças robóticas são articuladas, possuindo sete graus de liberdade de movimento. A imagem, tridimensional, pode amplificar em até quinze vezes o campo operatório permitindo compreensão anatômica superior. Outra grande vantagem da cirurgia robótica é a facilidade de incorporar processos de inteligência artificial e informações que aumentam a segurança do procedimento. Por fim, a plataforma robótica também permite que um cirurgião opere um paciente à distância. Realizada pela primeira vez em 2001, quando o Professor Jacques Marescaux operou de Nova York um paciente locado em Estrasburgo na França, a telecirurgia depende tão somente da velocidade e segurança da conexão e tem um potencial extraordinário no atendimento de pacientes e para a realização de procedimentos cirúrgicos de alta complexidade.

Essas vantagens desencadeiam uma inexorável tendência pela aquisição de sistemas e treinamento nesses dispositivos, o que determinou um crescimento vertiginoso da oferta desta modalidade cirúrgica nos EUA, passando de um robô em 1999 para quase dois mil robôs em apenas uma década. Na Urologia, mais de 90% das prostatectomias radicais são hoje executadas nos EUA através de um robô. A robótica cirúrgica chegou em 2008 no Brasil. De lá pra cá, já foram realizadas mais de 30 mil cirurgias e são 1200 cirurgiões certificados pela empresa em 14 especialidades médicas. O país conta hoje com 76 plataformas robóticas, metade destas locadas em hospitais na região Sudeste. A maioria está na rede de saúde privada, mas hospitais públicos do Rio de Janeiro, São Paulo, Barretos, Belém, Recife e Porto Alegre já contam com equipamentos pra atender a população. 

O impacto da cirurgia robótica no custo-efetividade da atenção a saúde no sistema brasileiro ainda não pode ser mensurado. No momento em que são poucos os hospitais do país detentores desta tecnologia, prevê-se um longo percurso na definição de parâmetros econômicos. Nos EUA, o custo médio deste procedimento foi calculado em torno de 15% acima do custo da laparoscopia convencional. No Brasil, os valores são ainda maiores. Espera-se que a natural redução de preços após os primeiros anos de sua introdução possam justificar uma maior disseminação da cirurgia robótica.

Os benefícios secundários da videocirurgia foram amplamente comprovados e retratados em pesquisas científicas. No entanto, os cirurgiões estão sempre em busca de novos procedimentos que minimizem ainda mais o trauma cirúrgico. Com o consentimento dos pacientes e sempre em busca de um procedimento cirúrgico menos doloroso, de mais rápida recuperação, com melhor resultado estético, todos estão atrás da "cirurgia invisível". No início de mais um século, move-se a roda da história pela curiosidade e engenhosidade de médicos e engenheiros pioneiros. O estabelecimento da cirurgia robótica dependerá da ultrapassagem da fase inicial de seu desenvolvimento. Com o mínimo de experimentação humana e com respeito a preceitos éticos, projeta-se um novo patamar para toda a cirurgia.

 

LAPAROSCOPIA & ROBÓTICA: UM PARALELO HISTÓRICO

A aplicação cada vez maior de avanços tecnológicos na medicina tem gerado, de forma crescente, em pacientes, cirurgiões e hospitais, preocupação sobre como introduzi-los e utilizá-los de forma segura e eficaz na prática clínica1. Na cirurgia, a evolução da plataforma robótica representada no mundo ocidental pelo robô Da Vinci da empresa Intuitive® tem trazido à discussão várias questões. Aspectos éticos, econômicos, educacionais e de aplicabilidade clínica que envolvem a implantação da cirurgia robótica na prática cirúrgica nos remetem ao início dos anos 1990, quando a videolaparoscopia começou a ser disseminada como tecnologia disruptiva que revolucionaria a cirurgia2,3.

Introduzida no Brasil a partir de 1990, a videolaparoscopia foi vista com muita resistência por parte de diferentes setores, incluindo a própria academia médica3. Além disso, a técnica foi considerada muito cara, complexa, pouco disponível e com aplicações clínicas limitadas3. Utilizada em escala crescente por cirurgiões muito pouco treinados, disseminou-se de forma heterogênea não só no Brasil, mas como no resto do mundo. No entanto, em pouco tempo esta nova tecnologia se expressou como padrão para o tratamento de grande parte das doenças em diferentes sistemas orgânicos e especialidades cirúrgicas4. A evolução tecnológica determinou desenvolvimento muito significativo na qualidade dos equipamentos e dos instrumentais videocirúrgicos. Paralelo a isso, os cirurgiões evoluíram tecnicamente, ancorados em metodologias mais efetivas de treinamento baseadas em simulação, fator fundamental para o estabelecimento definitivo da videolaparoscopia4.

Os primeiros procedimentos cirúrgicos assistidos por ferramenta robótica vêm também da década de 1990. A era robótica, na cirurgia abdominal, inicia-se com o lançamento pela empresa Computer Motion®, do robô Zeus5. No entanto, foi a fusão entre a Computer Motion® e a empresa Intuitive® que definiu a plataforma Da Vinci como o modelo evolutivo da cirurgia robótica5. Hoje, milhares de robôs Da Vinci se espalham pelo mundo e são incorporados com frequência crescente ao universo da cirurgia em várias especialidades5. A chegada de novas plataformas robóticas de outras empresas e a natural evolução do Da Vinci projetam um futuro robótico, e provavelmente flexível.

A cirurgia robótica no momento atual, assim como foi a videolaparoscopia na década de 1990, atua como tecnologia disruptiva determinando importante quebra de paradigmas e movendo adiante a roda da história3,5. Quando se analisam as particularidades da introdução de ambas as tecnologias no armamentário dos cirurgiões, notam-se muitas semelhanças neste processo. A cirurgia robótica e a videolaparoscopia expressam-se como interface entre cirurgião e paciente e se complementam já que é no ambiente da videolaparoscopia (cavidade fechada, videocâmera, imagem indireta, iluminação artificial, pneumoperitônio) que a cirurgia robótica se desenvolve3,5. Os equipamentos envolvidos em videolaparoscopia, assim como em cirurgia robótica (em muito maior quantidade e variedade), tornam o ambiente dentro da sala cirúrgica mais complexo e ameaçador em função do preenchimento do espaço físico e a diversidade de hardwares a serem controlados3. Neste contexto, equipe cirúrgica maior e muito bem treinada é altamente necessária. A comunicação entre os elementos da equipe cirúrgica se torna mais complicada e relevante, influenciando significativamente no sucesso do procedimento. É evidente que a cirurgia robótica é mais solicitante neste quesito. Ambas as tecnologias (robótica bem mais!) impuseram novos desafios de conhecimento para cirurgiões, anestesistas, enfermeiros, engenheiros - necessidade de aprender de novo, desenvolver novas habilidades4,5.

Os adventos da videolaparoscopia e da cirurgia robótica aumentaram os custos diretos relativos aos procedimentos cirúrgicos3,5. Em poucos anos, a videolaparoscopia conseguiu comprovar o custo-efetividade baseado na diminuição significativa do valor dos equipamentos e instrumentais associado à diminuição do tempo de internação hospitalar e rápido retorno às atividades profissionais pelos pacientes3. É muito provável que a cirurgia robótica siga este mesmo caminho, mesmo que o custo seja bem maior do que o da videolaparoscopia.

Novas tecnologias estabelecem necessidade de novas metodologias de ensino4. Na videolaparoscopia, o modelo principal foi simulação real em simuladores simples ("caixas pretas") e cirurgia experimental em modelo animal vivo4. Já na robótica, a simulação em realidade virtual parece ser o modelo mais acessível e sustentável6,7. Sendo assim, a utilização da cirurgia experimental em animais de experimentação vivos tende a diminuir na robótica. Neste sentido, o uso de peças anatômicas de cadáver humano surge como opção interessante, apesar de ainda cara6.

O tutoramento cirúrgico, inicialmente pouco utilizado na videolaparoscopia, estabelece-se hoje como importante método para o desenvolvimento de procedimentos avançados como videocirurgia bariátrica e colorretal4. Já na cirurgia robótica, o tutoramento é condição fundamental para o treinamento e certificação6. A deficiência em número e qualidade de cursos prejudicou a evolução da videolaparoscopia e se repete na cirurgia robótica, causando formação inadequada, com excessiva influência da indústria6,7.

A certificação também foi tema de intenso debate desde a introdução da videolaparoscopia no Brasil. Somente em meados dos anos 2000, quando a Associação Médica Brasileira (AMB) considerou a videolaparoscopia como área de atuação da cirurgia geral e digestiva, e definiu critérios de concessão e registro de titulação, que a certificação se transformou em realidade4. Já a certificação em cirurgia robótica ainda tem sido direcionada pela indústria6. Dessa maneira, ação do Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC) em parceria com outras sociedades de especialidade propõe normativa nacional para o processo de habilitação e certificação em cirurgia robótica no país6.

As semelhanças que observamos no processo de introdução e desenvolvimento de ambas as tecnologias não escondem grandes diferenças. A videolaparoscopia foi evolução da antiga laparoscopia, descrita no início do século XX, por meio da incorporação ao longo do tempo de avanços tecnológicos como a fibra ótica, eletrocirurgia, insufladores de CO2, videocâmera etc2. Em verdade, quando se comparam equipamentos e instrumentais, a videolaparoscopia parece definitivamente uma tecnologia ultrapassada, em relação à cirurgia robótica. A plataforma robótica tem extraordinário potencial de incorporação de outras tecnologias, principalmente na área de informação5. Além disso, a cirurgia robótica aproxima-se em termos de movimentos e visão da cirurgia aberta, com maior liberdade de ação de pinças articuladas e possibilidade de imagem em terceira dimensão, mesmo que a plataforma Da Vinci não forneça sensação háptica ao cirurgião5.

Melhorias recentes no conhecimento da telemedicina com utilização de conexão wi-fi de alta velocidade propiciam a utilização crescente, inclusive para tutoramento à distância de cirurgiões em formação e, em futuro próximo, para telecirurgia assistida por ferramenta robótica8.

Entre analogias e paralelos, pode-se concluir que o medo da "nova tecnologia", visto quando do aparecimento da videolaparoscopia, se repete com o advento da cirurgia robótica expresso por cirurgiões excessivamente conservadores e por pacientes pouco informados. Questionamentos de 30 anos atrás são repetidos sem constrangimento. A experiencia pregressa da implantação da videolaparoscopia deve ser lembrada e considerada, otimizando-se o cenário atual da plataforma robótica, na introdução e disseminação junto à comunidade cirúrgica e apresentação dos benefícios aos pacientes. O advento da "era robótica" e o potencial evolutivo desta tecnologia continuarão a auxiliar os cirurgiões em sua missão de atender com qualidade e segurança seus pacientes.

REFERÊNCIAS

1. Pradarelli JC, Havens JM, Smink DS. Facilitating the Safe Diffusion of Surgical Innovations. Ann Surg. 2019;269(4):610-1.

2. Lau WY, Leow CK, Li AK. History of endoscopic and laparoscopic surgery. World J Surg. 1997;21(4):444-53.

3. Cezário Melo MA. Mudanças: conceitos e resistências. In: Melo MC, editor. A reconfiguração da cirurgia. Recife, PE: Editora Prazer de Ler - Distribuidora de Edições Pedagógicas Ltda; 2010. p. 21-39.

4. Nácul MP, Cavazzola LT, de Melo MC. Current status of residency training in laparoscopic surgery in Brazil: a critical review. Arq Bras Cir Dig. 2015;28(1):81-5.

5. Leal Ghezzi T, Campos Corleta O. 30 Years of Robotic Surgery. World J Surg. 2016;40(10):2550-7.

6. Nacul MP, Melani AGF, Zilberstein B, Benevenuto DS, Cavazzola LT, Araujo RLC, Sallum RAA, Aguiar-Jr S, Tomasich F. Educational note: teaching and training in robotic surgery. An opinion of the Minimally Invasive and Robotic Surgery Committee of the Brazilian College of Surgeons. Rev Col Bras Cir. 2020;47:e20202681.

7. Stefanidis D, Fanelli RD, Price R, Richardson W; SAGES Guidelines Committee. SAGES guidelines for the introduction of new technology and techniques. Surg Endosc. 2014;28(8):2257-71.

8. Wood D. No surgeon should operate alone: how telementoring could change operations. Telemed J E Health. 2011;17(3):150-2.